13/12/12

...Numa infância permanente...



[…Bolas, Cisne! – Afirmei, mas baixando a voz – agora estás a misturar a infância com a idade adulta.
–– Não, Escritor. Porque a infância não existe. Ou só existe à distância ou nos outros. Quando tu eras criança...tenta lembrar-te, alguma vez pensaste “ não, isto que eu estou a pensar é estúpido porque ainda sou uma criança”. Pensaste, Escritor? Não! Tu sempre foste adulto a pensar para ti. Tu, e toda a gente, desde que se lembram, só tiveram pensamentos racionais, lógicos e maduros. Que, só depois, à distância, deixaram de o ser.
Fiquei mais um momento calado, tentando assimilar o que aquele ser desconchavado me tentava dizer. Quando lhe respondi, foi com muito mais calma, tentando não azedar uma conversa que até podia ter algum sumo.
–– Mas se nós, ao longo da vida, mudamos tanta vez de opinião e de maneira de ser. Se, há um ano, eu estava convencido de coisas que agora vejo estarem erradas. Então, o que me estás a dizer é que vivemos numa infância permanente.
Os lábios abriram-se-lhe num sorriso radioso…]


In "O Canto do Cisne" de João J. A. Madeira 


10/12/12

... Não faz mal. O meu pai é bombeiro...


[…– Admiro bastante os escritores – disse-me – a imaginação que têm e a facilidade com que a transformam em frases marcantes. Tu tens essa qualidade. A de criar frases que não se esquecem. Há uma, por exemplo, que eu sempre recordarei por a ter achado linda: “Eu tive uma fazenda em Àfrica”...
– Eu conheço – interrompi – da Karen Blixen em África Minha.
– Sim. Ou da Meryl Streep no filme. Chega uma altura em que não consigo dissociar a frase do rosto que a disse. Mais do que de quem a escreveu. Mas, seja de quem for, é uma frase que me causa uma certa nostalgia. Começar uma história a dizer aquilo que se teve é, no mínimo, sublime. Dá a sensação de que tudo o que aconteça daí para a frente não fará sentido, não terá importância, por mais dramático que venha a ser, por estarmos protegidos por um escudo que nos dá imunidade, o escudo daquilo que já tivemos. “ Eu tive uma fazenda em África” – declamou – É como quando se é garota e nos acontece alguma coisa ruim. Dizemos para os outros: “ não faz mal. O meu pai é bombeiro”…]

In "O Canto do Cisne" de João J. A. Madeira 


04/12/12

... Tu és escritor?



[…Levantei a cabeça do meu caderno e do meu café, meio frio e meio vazio, a tempo de ouvir a pergunta que o Cisne me fazia. Parada, com as mãos apoiadas nas costas da cadeira à minha frente, perguntava-me, não pela primeira vez:
–– Tu és escritor?
Devo ter feito uma expressão de pasmo devido ao ineditismo da situação, pois nunca ninguém me dirigia a palavra. Talvez por isso, sorriu e repetiu:
–– Mais uma vez te pergunto se és escritor.
Foi a minha vez de sorrir e, mastigando lentamente a pergunta que me fazia, acabei por responder:
–– Sou. Porque escrevo.
Deu uma ligeira gargalhada e, sem qualquer convite ou anuência da minha parte, acabou por desviar a cadeira e sentar-se.
–– Não faz mal. Também há quem diga que sou um ser humano porque falo. E que escreves tu quando estás para aí com a caneta zuca, zuca, zuca? – e fazia o gesto de escrever, com a mão direita.
De certo modo grato pela quebra de rotina, recostei-me na minha cadeira e falei, com agrado, para aqueles olhos:
–– Oh! Coisas simples, triviais, conforme vou imaginando. Episódios da minha vida, do que me rodeia, às vezes até do que sonho acordado. Embora aí o resultado ande mais pela ficção científica…]

In "O Canto do Cisne" de João J. A. Madeira 


03/12/12

...Maravilha da natureza...



         […Só uma coisa mantenho. O gosto pelas mulheres bonitas. Na minha solidão, no meu auto-isolamento, serve-me de companhia a observação dessa maravilha da natureza que é o corpo de uma mulher. O seu andar sensual, as suas curvas perfeitas ou avantajadas, os seus seios que imagino por baixo de blusas ou camisolas mais ou menos denunciantes. E as suas nádegas dançantes e convidativas que sobem e descem, sobem e descem. Que fascínio, que loucura elas me provocam, fazendo-me virar a cara, constantemente, quando por elas passo na rua. Ou olhando disfarçadamente quando a minha me acompanha. Tenho para mim, que só existe paraíso para além da morte se acordarmos deitados no corpo de uma mulher.
         Embora, neste momento, atravesse uma fase que só tem equivalência na ambição de ter um carro e não saber conduzi-lo. Ou ter nas mãos um disco maravilhoso e não ter aparelho para o tocar…]

In "O Canto do Cisne" de João J. A. Madeira 

02/12/12

Eu tive uma fazenda em África...






Eu tive uma fazenda em África.
         Maneira estranha e absurda esta, de começar uma história. Porque esta frase, além de ser um plágio, é também uma mentira. Nunca tive uma fazenda, muito menos em África, onde nunca estive.
         Os meus pais também nunca a tiveram mas, como agricultores que eram, trabalharam em várias, nessa arte que eu hoje desconheço totalmente por me ter tornado um homem citadino. Nos finais dos anos 50 rumaram à cidade, como muitos outros e em várias épocas, em busca de uma vida mais digna, mais rica e menos preocupante. Não sei se a encontraram. O que sei, é que sinto agora a falta de conhecimentos que teria tido naturalmente se eles não tivessem tomado essa decisão. Hoje, não sei como se chamam as árvores que ladeiam as ruas do meu bairro. Nem o nome das plantas que ornamentam aquilo a que chamam zonas verdes. Não sei, ponto por ponto, como se faz o vinho que bebo nem o azeite com que tempero. Sei, isso sim, as marcas preferidas dos produtos que compro no hiper-mercado. Leio nos rótulos aquilo que os fabricantes dizem que contém – quantos conservantes, que corantes e até quando posso usá-los – compro fruta de toda a qualidade em todos os meses do ano e legumes frescos sem saber que a sua época já passou…

In "O Canto do Cisne" de João J. A. Madeira